O QUARTO MÁGICO - Segunda parte


Se eu tivesse um GPS não encontraria com tanta exatidão aquele ponto minúsculo no mapa, agora atormentado entre conflitos políticos. Mas cheguei. Havia um magnetismo, algo que me chamava para lá e que anulara por completo a possibilidade de erro.

Encontrei nosso recinto milagrosamente conservado. Sabia que seria assim mas não deixa de ser incrível. Abri todos os invólucros do tempo e entrei.

Toquei com meus pés aquele chão tão nosso. Estava surpreendentemente limpo. Foi quando descobri – tão tarde, meu Deus! que a história poderia ter sido retomada muito antes se eu não tivesse acreditado tão tolamente na morte.

Encontrei tudo como se fora uma mesa de café da manhã parcialmente desfrutada, abandonada às pressas por uma emergência qualquer mas deixada ali, para ser retomada poucos instantes mais à frente.

O espelho continuava lá, impassível. Evitei-o a princípio.

Pensei que ao entrar sentiria uma emoção, um apertar de peito. Nada. Era como se tivesse sido ontem. Estranho, como se ainda ontem eu tivesse trazido flores, almofadas novas e meus seios duros.

Percebi tudo como se fosse tão simples! Ainda não ousava me olhar no espelho porque temia o contraste, mas uma coisa já havia percebido: não havia poeira, nem cansaço nem dor nas pernas: nenhuma evidência física do passar dos anos. O ontem era fresco como uma fruta recém colhida.

Conforme ia caminhando pelo aposento pouco a pouco as coisas se invertiam. O que era lembrança lúcida e verdade absoluta de meu passado recente, agora me parecia idéia sem cabimento. Tudo o que vivi naquele quarto com aquele homem, mais especificamente há mais de quarenta anos, isso sim era claro, límpido e fazia todo sentido. O resto se desvanecia rapidamente.

Continuei conferindo tudo como um scanner. Toquei em cada objeto, chequei-os, tomei posse, tornei-os meus novamente. Sentei na poltrona, na cama, na cadeira... repeti o roteiro intercalando um abrir e fechar de armário, de caixa, experimentando um colar, um chapéu, um grampo. Estava agora em um segundo momento. Ao contrário do primeiro, no qual pareceu-me ter estado ainda ontem aqui, agora houve como que um “estiramento” em minha percepção de tempo. Entendi que não foi “ontem” mas talvez “semana passada” que nos perdemos um do outro. Aos poucos, bem aos poucos fui me situando.

Agora eu sabia com a certeza dos fanáticos que tudo seria revelado, entendido, desvendado. Era esperar. Agora era mais que certo que o tempo só começou a contar porque distanciei-me dali.

Parecia como se eu mal tivesse acabado de chorar a minha dor; como se a última gota do luto há pouco tivesse escoado e só agora eu conseguisse pensar um pouco. O tempo é uma ficção.

Sentei em nossa cama novamente e alisei a colcha. Mirei-a como se fosse nova e a tivesse acabado de ajeitar. Quanto tempo se passou? Não sei, mas acabou-se a saudade. Ninguém tem saudade por tão pouco tempo, por um virar de rosto.

É como o sol no seu ocaso, que muda as tonalidades todas do céu e de tudo o mais que seus raios alcançam. Eu estava sob uma influência semelhante. Agora nascia em mim uma coisa nova em lugar do luto. Era uma expectativa, uma ansiedade talvez. Quase uma alegria. Sim, era uma alegria!

Os lençóis, os vinis, a jaqueta de couro, o sabonete, aquele resto de loção, o travesseiro, as almofadas, as miniatura de carros, o violão, tudo isso sorria como se não suportassem mais guardar o segredo. Manuseei todos eles tentando entender.

Meu Deus, em que momento demente cheguei a acreditar que havia deixado de ser jovem? Que pesadelo foi esse do tempo, da morte, do soterramento, do desencontro, da guerra, do desabamento do nosso mundo? O que aconteceu comigo? Estive louca por todo esse tempo? Houve mesmo “todo esse tempo”?

(Terceira parte...)

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