Um conto encomendado

Em resumo, não havia nada de errado com aquela mulher. Nada objetivo. Mesmo assim ela se angustiava por tudo o que não lhe aconteceu na vida e por tanto tempo se prolongara aquele sentimento, que já nem sabia se  deveria ou não desistir dos seus sonhos.



Sua avó lhe dizia que a frase "nunca desista dos seus sonhos" não era um bom conselho. Não podemos desistir dos sonhos que dependem de nós para serem alcançados mas outras  realizações são diferentes. Quando a realização do sonhos depende de outros... às vezes não vale a pena continuar.

O pensador obssessivo é um pescador tolo fazendo barulho no mar dos mistérios da vida.


Ela adorava ficar só.  Às vezes ia ao sítio da sua tia. Era bom. E lia, entrecortando as páginas com breves cochilos. Uma formiga, uma folha no rosto, um grilo... Cada hora era um pequeno evento que a acordava.  Só que um dia aconteceu uma coisa diferente.

A semana havia sido muito difícil e aquela sexta feira apontava para a hora de "fugir".

A noite parecia um pouco mais triste naquela localidade. Convidou a filha da caseira para tomar sopa e conversar. A menina era graciosa e um pouco tímida, mas eram amigas. Contava uns seis anos de idade. Nessas horas ela sempre fazia de conta que a menininha era sua. Pequena fantasia inocente, que a mãe da garota percebia mas não se incomodava. "- Talvez eu não possa ter filhos. Se não puder, se eles nunca vierem, essa será a minha filhinha secreta, do meu coração. Ela há de lembrar de mim, das histórias que contei, e me amará. Serei para ela uma espécie de fada madrinha. Ela nunca se esquecerá de mim nem eu me esquecerei dela."

A garota era filha única de sua mãe e de fato chamava a moça de "tia" com uma doçura tão grande que em seu coração ela escutava como "mãe".  Sempre lhe levava um presentinho: um par de chinelinhos novos, calcinha, chocolate, roupinhas para a sua boneca, livro de colorir, biscoitos recheados. Sempre.

Sábado pela manhã - linda manhã! Ficou na casa fazendo biscoitos de bichinhos com Marianinha. Depois do almoço preferiu retirar-se. Seu lugar preferido era aquela pé de jambo bem à beira do igarapé. Era um igarapé raso, de águas escuras e geladas. Refletia todas as árvores ao seu redor, como se dentro dele houvesse uma floresta de vidro. Abriu a esteira e sentou-se com seu livro para mais uma "viagem". Adorava Monteiro Lobato. Gostava de imaginar que entrando naquele lago, assim como aconteceu com Narizinho, ela poderia conhecer o Reino das Águas Claras. Talvez ficasse por lá. Talvez seu amor estivesse lá, no fundo do igarapé.

Era lindo o Reino das Águas Claras descrito por Monteiro Lobato e o Sítio do Pica-Pau amarelo deveria ser  parecido com aquele, da sua tia. Eram tão criativas e envolventes aquelas cenas das aventuras que vez por outra ela mesma  interrompia a leitura para fechar os olhos e imaginar-se em um local assim, onde coisas absurdas poderiam acontecer.

Se pudesse ir ao Reino das Águas Claras talvez fosse mais fácil ser feliz:, ter filhos, um lar, um homem apaixonado. Teria segurança, amigos, sua casa seria acolhedora, ela seria fluente e desembaraçada, uma mulher forte, uma mãe maravilhosa. Haveria cortininhas, almofadas, doces, roupas cheirosas e além das muitas plantas e flores delicadas e mimadas.

Em dado momento caiu uma folha em seu rosto. Foi quando tentou abrir os olhos, mas não conseguiu. Nem se mexer. Parecia-lhe que estava acordada. Parecia ter ouvido umas galinhas cacarejando mas não conseguia fazer nada. Estava presa!  Aos poucos teve a sensação de estar escorregando para dentro do igarapé... Não sentia mais o livro em suas mãos. ele sumira ou... ou se tornava realidade. Conforme ia entrando na água seu olhos se abriram e... Nossa!  Aconteceu!

Se era um delírio, um sonho ou meio-sonho, não importava. Haveria de acabar e ela se levantaria de lá para jantar e dormir mas por enquanto queria viver aquela loucura.

Era lindo o seu "Reino das Águas Escuras".  Os peixes eram como pássaros: "voaram"  coloridos pelo seu trajeto. Plantas diferentes, pedras... Não parecia mais o fundo de um igarapé, mas o fundo do mar.

Estava certa de que o tempo não passava pois em algum lugar do universo o tempo realmente não existe. Havia mesmo aprendido que o tempo é uma ficção e naquele momento isso lhe pareceu muito obvio.

Ao manusear  uma estranha planta que encontrou, notou em sua mão uma aliança de ouro. Uma aliança? Achou estranho e mas não demorou pensando nisso proque havia coisas demais a chamar sua atenção.

Havia até sereias! Falavam sem parar e riam muito. Uma delas, de cabelos verdes, aproximou-se. A voz parecia música, era estranhamente suave. Ela falava como quem fala em sonhos, em sussurros.  Conversaram muito. Foi quando ficou sabendo que sereias dormiam nas rochas submarinas e não tinham maridos. Disse isso quando olhou para a mão da moça, que tinha uma misteriosa aliança. Entre sereias não havia esse tipo de vínculo.  Reproduziam-se mas jamais deixavam de ser irmãos uns dos outros. Não formavam casais, apenas famílias.  Viviam em cardumes festivos e não conseguiam entender as idéias românticas dos humanos. Achavam suas vidas muito mais simples. E era.

A menina-peixe disse também: "- Como você é feliz!   Adoro olhar sua casa azul, cravejada de pedrinhas. Seu marido é tão belo como um sereio, mas tem lindas pernas e te dá muito amor.  Não sinto necessidade disso, mas já sei como essas coisas lhes parece importantes. Esqueceu novamente onde mora?  É normal dar esquecimento em quem vem aqui. Mas não se preocupe, eu sei o caminho. Vou até lá com você. Está na hora do seu filhinho jantar."

"- Que surpresa! Tenho um filhinho!"   Foi quando olhou para si e descobriu estar vestida com uma trama delicadíssima de algas, formando um vestido de malha verde, magnífico e longo. No pescoço, uma corrente. O pingente era a foto de um homem lindo pelo qual, na primeira olhada, se apaixonou. A sereia riu e disse: "Muito lindo o seu marido. Pena que não tem cauda. Vamos!"

Depois de um longo caminho eparou-se com sua casa. Havia uma paz gostosa lá dentro e um cheiro de comida.

Uma ansiedade opressiva tomou conta do seu coração. Era agora, exatamente agora que ela conheceria o amor da sua vida, o homem que a fez a mulher mais feliz do mundo! Com quem tinha um lar e um lindo filho. Quisera que esse sonho não acabasse jamais porque ela estava absolutamente feliz, como sempre sonhou.

A porta estava aberta. Entrou ansiosa mas sorridente e ouviu alguém chamar  "mamãe!"  Correu cheia de amor, pronta para dar um abraço apertado naquele serzinho que nem conhecia mas já amava muito naquele lugar inexplicável. O menino tinha cabelos muito negros e os olhos também, como duas pedras de ônix. Agarrou-o sem saudade. Era como se nunca tivesse saído de perto dele; como se há anos estivesse ali, feliz e completa.

Não tinha mais curiosidade em saber como era seu marido. De repente lembrou de tudo. Sabia como ele era, cada detalhe de seu corpo, o tom de sua voz, tudo! A comida já estava pronta à mesa e da porta ouvia o som de seus passos. Olhou-o e seu rosto era absolutamente familiar. Espantosametne familiar e nenhum sentimento exaltado de paixão tomou seu coração. Sentia um amor calmo e acostumado. Estavam juntos há anos!

Conversaram muito, se amaram. Ao dormirem, de madrugada ela acordava vez por outra só para constatar que ainda estava ali. Era incrível ainda não ter sido novamente transportada para "o mundo seco". Chegou mais perto do seu marido, cheirou seus cabelos... Ele acordou, abraçou-a e voltou a dormir. Foi ao quarto da criança e lá estava seu lindo filho, tranquilo e aconchegado.

Passeavam todos os finais de tarde, os três. Riam, brincavam. Na maioria das vezes não falavam em coisas sérias. Faziam planos de vaigens, imaginavam como o menininho seria quando crescesse, idealizavam outros filhos... A noite era só paz. Iam a festas, tinham muitos amigos. Nada lhe faltava.

Uma manhã qualquer ela deitou a cabeça no ombro de seu querido e falou sobre aquele mundo e sobre  "o mundo seco" . Disse que não queria mais voltar para lá, pois nunca fora feliz naquele lugar. Queria ficar para sempre naquele "Reino das Águas Negras", que era o seu paraíso.

O rapaz olhou profundamente eu seus olhos e disse que aquilo era impossível. Tanto no mundo seco quanto nas águas, TODOS os sonhos se acabam. A vida perfeita que ela tinha agora iria acabar, assim como a vida imperfeita acabava. A nossa existência é isso mesmo: alternância de épocas aparentemente boas com as aparentemente ruins. Ninguém sabe ao certo o que é bom ou o que é ruim porque as coisas boas tem sempre uma parte prejudicial e as coisas ruins tem semper um lado positivo.

Ela assustou-se. Não, não queria voltar! como seria agora, sem seu filho? Sem o homem da sua vida?

Ele falou, pacientemente, que TODAS as mulheres perdem seus filhos e os seus maridos um dia. Mais cedo ou mais tarde isso acontece. Ninguém tem ninguém para sempre.

"-Não! Não! Não aceito isso!"   gritou a moça, com muito medo.
"- Não depende de você aceitar! A vida é assim. 
- "Não!"

Por um momento ela parou e teve a nítida convicção de que morreria de amargura no momento em que perdesse aquela felicidade. Não podia, ela enlouqueceria! Esperou muito tempo por aquilo; não poderia acordar e tudo simplesmente acabar.

Sentiu uma formiga percorrer seu braço. Formiga? Não havia formiga. Mas sentia. E sentia também o vento em seu rosto embora nas águas não houvesse vento, apenas ondas suaves. Percebeu que iria acordar e o pânico tomou conta de tudo. Quanto mais medo sentia, mais seu coração batia e essas batidas a despertaram completamente.

Novamente estava ali, debaixo da árvore com o livro caído ao seu lado. Havia adormecido. Por quanto tempo? A tarde se despedia com matizes vermelhos no céu. Calculou que dormiu umas três horas seguidas. Seu pescoço doía ligeiramente e em seu vestido muitas folhas se acumularam.

Ainda estava atônita com tudo: o sonho, a família que deixara ali dentro do igarapé. Que coisa estranha!

Voltou para casa onde um silêncio acolhedor a esperava. "Melhor não pensar demais..." Mas pensou muito em seu travesseiro. Custou a dormir e quando adormeceu não teve sonhos. Era um sono em branco, estéril e leve.

Passou a semana toda tentando traduzir o que lhe havia acontecido. Algo estranho havia sido operado dentro dela. Não foi sonho! Ela sentia seu lar, seu marido e filho dentro de seu coração. Sentia os anos que passaram misteriosamente juntos. Não sabia dizer como, mas era real.

Olhou para dentro de si mesma e viu que, de tudo, restou uma saudade tranquila. É como se fosse idosa e há muitos anos aquilo tivesse acontecido. Era esse tipo de saudade, não saudade presente e desesperadora, mas saudade de quem olha fotografias amareladas.

O grande sonho da sua mocidade se realizou completamente.  tudo aconteceu em algum lugar. Não saberia dizer como, se em outra vida ou dimensão. Havia um lugar onde ela foi casada e feliz. Havia um lugar onde um homem a amou profundamente.

Ela agora estava completa.  Deve ter sido milagre. Agora sim ela seguiria sua vida em paz, sem frustrações.  Era real e era segredo. Ninguém acreditaria e ela não percisava que alguém acreditasse.  Não queria outro homem nem outros filhos. Já os teve e foi feliz pelo tempo que Deus lhe deu.

Estranhamente a vida agora se sentia completa. Olhou de repente sua mão.... Que susto! ali estava uma velha aliança de ouro, arranhada, gasta. Sorriu e sentou-se novamente a mulher completa que sempre quis ser.
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