Por que não escrevo um romance - parte III


...Fazia tempo que ela não olhava o mundo assim, como uma pintura que se mexe, como uma foto profissional ainda em formação sendo gestada durante o dia e finalmente revelada durante as lembranças da noite. Alguém jogou papéis picados de alguma janelinha lá em cima. É errado mas é bonito. Obrigada pela homenagem! Sinal fechou, atravessou a rua olhando para cima, puxaram a bolsa, tentou reagir, meteu o pé em um buraco, caiu, bateu a cabeça...

Ela estava aérea mas feliz num certo lugar tranquilo, macio, cheio de seres simpáticos e solícitos. O que importa onde estava? Não era o céu mas, quem sabe sua antecâmara. Um rapaz cheiroso, educado e alto, tão alto quando os personagens mais gloriosos das histórias infantis - sim! - esse rapaz tomou docemente a sua mão e perguntou se estava bem. Ela sorriu atacando de frágil. Charminho. Ele virou de costas para pegar algo (quem sabe uma aliança de noivado? Não, é delírio. Flores? Também delírio. Convite para assistir a um jogo no Mangueirão? Pesadelo. O que ele fazia assim, de costas? Um bonitão não pode ficar de costas para uma gentil senhorita. A cabeça doía mas nem por isso custou a desconfiar que estava em um hospital. Aos poucos lhe veio à lembrança a cena onde andava abestalhada pelo centro da cidade e se acidentou. Lembrou principalmente do seu plano quando viu o príncipe de costas e pôde constatar que ele era o legítimo proprietário do traseiro que fazia dele a vítima perfeita. Bela bunda. Não serve para nada mas é bela. Para quê uma mulher se interessa por traseiros masculinhos? Por amor ao belo, apenas. Nenhuma idéia, nenhum motivo prático, nada. A vontade é só olhar, dar um beliscão e seguir em paz o seu caminho.

E ele ali de costas, remexendo vidrinhos com seu sentante bem feito sorrindo na calça branca. Era a chance. Estava tonta, estava confusa, estava sem entender bem onde estava... Justificou para si mesma o ato tresloucado com a idéia de que poderia sem saber estar às portas da morte. Quem está às portas da morte tem direito a um último pedido e o seu era aquele.

Não pensou muito: ainda meio grogue esticou o braço e acariciou mensamente aquele pedaço de saúde. Não beliscou como fazem as safadas. Não se afundou como fazem os inconvenientes. Apenas passou a mão com aquela desenvoltura de quem fez isso a vida toda e essa é apenas a apalpada de número 3.577. Pronto, fez. E que rufem os tambores.

Não haviam tambores mas mesmo assim o dono das lindas almofadinhas se assustou. Deveria já estar acostumado! Mas deixou cair alguns vidrinhos e olhou para trás. Claro que ela voltou a fechar os olhos e se mostrou cinicamente zonza, confusa, como quem naõ sabe o que está fazendo, tipo "ai meu Deus, o que faço aqui? Oh desculpa, estou desnorteada e sem pensar alisei o seu traseiro! Oh sedem-me por piedade!" E por dentro pensava: "será que cola?"...

(Continua. Poderia estar melhor se vocês participassem, né.)

Cristina Faraon
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