Conto "Por que não escrevo um romance" - Parte I


Parte I - Em caso de fim de mundo

Por que ainda não escrevi um romance? Gosto de romances, gosto de histórias. O problema é que a minha personagem, aquela que invade minha imaginação toda vez que tento imaginar uma história legal, é um saco! Ela é chata de doer. E indecisa. Não consegue resolver nem qual será a primeira coisa que fará quando levantar da cama com a cara quadriculada. Sonha em viver, mas não vive nunca. Por isso mesmo, entre tantas opções, deixa-se estar por mais tempo na cama. Escrever o quê sobre uma pessoa dessa?

A personagem do romance que ainda não escrevi é um tédio, não vive em agitos nem enfrenta perigos. Mora no subúrbio e sua vizinha tem um galo insuportável que enche a paciência todas as manhãs. Aos sábados e domingos o intolerável canta mais alto. O dono da padaria da esquina (sempre suorento e mal vestido) é o único macho da face da terra que se dispõe a come-la. Ela está quase cedendo por pura necessidade. O que a segurou até agora foi seu último fiapo de orgulho. Mas você sabe: quando a necessidade entra pela porta, o orgulho sai pela janela. É só uma questão de tempo, todos sabemos.

Não tem mais pai nem mãe mas não é velha - nem atraente. Não é feia, mas chata, como todos já sabemos. Feiúra, gordura, velhice, magreza, pobreza... tudo se atura, mas chatisse não.

Por isso não escrevo sobre ela: também por orgulho. É a única personagem que aparece na minha mente assim como o dono da padaria é o único homem interessado nela. Ô triângulo miserável! Presumo que escrever sobre essa mala sem alça seja só questão de tempo também...

Mas...

Finalmente hoje ela me fez um grande favor. Sim, ela, a minha algoz, aquela que está massacrando com o meu ego, que está boicotando minha imaginação a ponto de eu desistir de um conto e aceitar humildemente arriscar um continho. Como ia dizendo: sim, aconteceu algo especial.

Minha algoz finalmente acordou com uma idéia nova na cabeça. Ufa! Não uma grande idéia, claro, mas qualquer coisa seria melhor do que o nada de sempre. É a primeira vez que ela acorda em minha imaginação! Já é um progresso.

Ainda na cama, mas acordada, hoje ela resolveu dar-se a uma pequena aventura. Ativou a parte imaginativa do seu cérebro bolou algo obviamente idiota: decidiu protagonizar um dia diferente dos outros, um dia único. Parou aí por infindáveis minutos.

Todos os dias são únicos, estamos cansados de saber. Todos nós, menos ela, que nem nome tem ainda. Claro que ficou um tempão na cama imaginando o que poderia fazer de interessante naquele sábado modorrento. Só o que deu corda à sua imaginação foi fazer de conta que o mundo terminaria no dia seguinte. Era o mote que precisava.

Não, ela não resolveu continuar deitada de olhos fechados imaginando como seria esse último dia do planeta Terra. Decidiu vestir mesmo a camisa e viver ousadamente como se fosse verdade, como se a uma bomba nuclear estivesse prestes a explodir - ou algo assim. E ela não se deteria imaginando as consequências de o mundo não vir a acabar e depois ter que se explicar para a sociedade.

O problema é que a praga da mulher é tão chata, mas tão chata, que não conseguiu pensar em nada mais criativo do que passar a mão na bunda do homem mais bonito que ela encontrasse no caminho. Pelo amor de Deus!

Foi a partir daí que passei a pegar raiva dessa incompetente. Se eu tivesse a liberdade que ela tem, me empenharia em algo melhor. Tipo acordar cedo, comprar umas roupas legais e passar o dia visitando os lugares bonitos da cidade, restaurantes maravilhosos, puxando papo com intelectuais... ir para um hotel de luxo e passar o dia luxando... sei lá! Tinha que ser uma coisa simplezinha assim porque se o fim do mundo fosse amanhã não seria possível providenciar nada muito elaborado.

Bem, como eu ia dizendo a mardita era tímida. Achou que 24 horas seria pouco tempo para tentar arrastar um bonitão para a cama. Achou, em sua ignorância, que passar-lhe a mão na bunda seria divertidíssimo, seria uma casquinha para ela e um mico para ele, um justo castigo por nunca ter notado sua existência.

Por que não cantar o tal homem, só pra ver no que daria? Simples: porque sempre soube que sua tolerância a rejeição era abaixo de zero e no caso de o mundo não acabar (como de fato não acabaria) ela teria dificuldade em conviver com isso. Então...

Não colocou sua melhor roupa. Não estava se aprontando para seduzir, mas para brincar, ser adolescente e inconsequente pelo menos uma vez na vida, não ligar para a reputação, não tentar agradar e ainda rir da cara dos outros. Só isso. Depois ela tomaria um sorvete, sentaria na praça, riria de si mesma e descansaria em paz seu corpinho quase virgem.

Onde arranjar um homem bonito? Claro que não seria em qualquer lugar perebento. Os bonitões se aglomeram em locais bem específicos...

(Aguarde os próximos episódios. Essa história tem continuação sim! Se quiser participar, sugira algo para as próximas cenas.)
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