Desde quando legalidade e moralidade são sinônimos?


Texto de Cora Rónai


Na entrevista que deu à Veja esta semana, Michel Temer, a excelência mor, disse que, no Congresso Nacional, há “confusão entre o que se pode fazer e o que não se pode fazer”; disse ainda que “há falhas no controle”, e que “os erros de poucos não podem contaminar a instituição”.
Como contribuinte às voltas com o assalto do imposto de renda, de um lado, e, do outro, o noticiário simplesmente obsceno da política, tive que respirar fundo e contar até dez -- várias vezes -- para não ter um ataque de fúria.

Não basta ter cara de pau para dizer isso; é preciso também subestimar, em altíssimo grau, a inteligência dos leitores. Prevarique, excelência, já que ninguém lhe disse que prevaricar não se pode fazer, mas, por favor, não me chame de burra!

Qualquer criança razoavelmente educada sabe, muito bem, o que pode e o que não pode fazer. Vai me dizer agora que um bando de marmanjos não sabe?! O fato de não existir regulamentação proibindo congressistas safados de levarem a família de férias às custas do contribuinte não significa, em absoluto, que qualquer congressista safado esteja automaticamente autorizado a fazê-lo.

É mais do que evidente, para qualquer pessoa com um mínimo de dignidade e de boa fé, que verbas públicas não podem ser usadas para fins privados. Qual é a regra que está faltando para que a politicalha entenda isso?

Em que mundo levitam as excelências que não percebem que os seus gastos nababescos custam o suor de brasileiros que trabalham de verdade? Em que mundo vivem as excelências que acham normal que seus filhinhos mimados torrem dezenas de salários mínimos em conta de celular, só assim? Em que mundo vivem as excelências que, não contentes em alugar jatinhos às nossas custas, ainda têm a petulância de posar como partes ofendidas?! Em que mundo, afinal, se homiziam essas excelências que, pegas em flagrante, reagem afirmando que “faltam regras claras”?!

Ora, o que falta, excelências, é apreço à democracia, é amor pelo país, é compaixão pelo povo que trabalha de sol a sol e não tem escola, não tem hospital, não tem nada. O que falta é vergonha na cara.

* * *
Pior do que a roubalheira interminável que assistimos, se é que pode haver algo pior, é o seu leque malsão de efeitos colaterais. Eles podem ser ouvidos em qualquer lugar, nos cabeleireiros, nos ônibus, nos botecos, nos escritórios;
eles podem ser lidos nas seções de cartas de leitores e na internet, das caixas postais que rosnam com abaixo-assinados e textos indignados aos blogs e caixas de comentários do noticiário.

O mais deletério à nossa auto-estima é o argumento, repetido à exaustão, de que o congresso é a cara do país, e que a canalha que lá está nos representa à perfeição.

Não é verdade.

O Brasil é muito melhor do que os seus políticos. Olhem ao seu redor, na sua casa, entre os seus amigos e conhecidos: a maioria dos brasileiros é gente correta e batalhadora, ocupada em ganhar a vida. Essa maioria só sai no jornal como vítima:
de assalto, atropelamento, bala perdida, burocracia, erro médico. A questão é que a política anda tão nojenta, mas tão nojenta, que causa repulsa às pessoas decentes.

Outro péssimo efeito colateral da safadeza generalizada é a idéia de que não sabemos votar, e que não fizemos direito o nosso dever nas eleições: afinal, a maioria dos políticos está na vida pública graças aos votos dos seus eleitores. O problema é que só se pode votar bem quando há opções que permitam fazê-lo. E, pelo visto, não há opções.

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O efeito mais perigoso de todos, porém, é que mais e mais se ouvem pessoas a favor do fechamento do Congresso: se ainda não perceberam, conversem um pouco na rua, leiam os fóruns na internet, prestem atenção. Vocês vão ver como esse sentimento se generaliza (sem trocadilho!). Não se pode nem falar em saudades da ditadura.
Muitos jovens que nem eram nascidos naqueles maus tempos não entendem para que o país precisa de um legislativo que custa tão caro, dá tão mau exemplo e só legisla em causa própria. Do jeito que as coisas vão, está cada vez mais difícil defender o Congresso e, consequentemente, a democracia.

É isso, sobretudo, que não devemos, nem podemos, perdoar a essa corja de traíras irresponsáveis. O Congresso não é a casa da mãe Joana, nem pertence aos camatas e sarneys da vida; ele pertence a todos nós, e o seu funcionamento, em plena liberdade, foi conseguido com muito sacrifício para ser, agora, tornado irrelevante em troca de seis dinheiros.

* * *
Para nós, cariocas, que tanto nos orgulhavamos de ter um parlamentar como Fernando Gabeira, e tanto nos empenhamos na sua campanha à prefeitura, fica, além de tudo, o gosto amargo da decepção. Nunca pensei, aliás, que pudesse usar essa palavra – decepção – em relação a um político, mas aí está. Continuo achando que, apesar de tudo, existe uma grande distância entre ele e a maioria dos seus pares; mas não há como negar a mancha na sua biografia, ou a dúvida entre o seu eleitorado. O que mais ele fez que apenas ainda não veio à tona?

Do que mais vão se arrepender depois do flagra?


(O Globo, Segundo Caderno, 23.4.2009)

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