O QUARTO MÁGICO - primeira parte


Não contei a ninguém sobre aquilo. Algumas coisas precisam dormir em relicários. Difícil explicar.

Olho o passado. Agora parece-me estranho que eu não lhe tenha tomado as mãos em sua despedida. Nem ao menos juntei-me à multidão que velava à sua janela. Nenhum deles sabia exatamente o tom de sua voz quando reverberava entre meus cabelos ou o jeito que suspirava quando me abraçava sem saber o que dizer. Não fui porque não me senti um deles.

Era eu sua realidade paralela, o lado de dentro. Éramos um para o outro o que a vida tem de mãe, de acolhedora. Aquela parte que prescinde do sol, nascida na escuridão e que ali mesmo conhece o seu lugar.

Por que dizer isso agora? Porque hoje é meu dia especial.

Ontem, depois de décadas, voltei ao “quarto mágico”. Era assim que o chamávamos. Hoje é um lugar embrulhado em muitas camadas de “papel de seda do tempo”. Quase um casulo. Algumas vezes parecia-me enorme, mas em outras, pequeno e aconchegante.

Depois de sua morte pensei que não valeria mais a pena retornar. Anos sem sentido fizeram-me mudar de idéia somados a falsos romances, saudades incuráveis, doenças, o teimoso esvair-se dos dias mais os últimos acontecimentos políticos.

Semana passada acordei inquieta sem conseguir me livrar de um sentimento incômodo; uma inquietude, um sentimento de urgência que custei a entender.

Eu precisava voltar o mais rápido possível.

Não me organizei. Fiz o mínimo e não me despedi de ninguém. Sou supersticiosa com planejamentos detalhados, tenho horror a eles. Acho que existem para que nada dê certo. Funcionam como pistas para os demônios que nos espreitam. Então fiz tudo como quem foge, como quem não pode errar.

Não foi um ato de loucura. Agora vejo que loucura fora passar tantos anos numa vida que não era a minha.

(Segunda parte...)

Nenhum comentário:

Previous Post Next Post Back to Top